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Mostrando postagens de janeiro, 2012

Pequenos nadas da infância

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Pequenos nadas da infância             Frente ao verde que se perde na montanha, vejo folhas se misturando com lembranças de infância. O vento sacode, espalhando-as pelo vale: cerração, frio no nariz, cama gelada. O faz-de-conta do banho, o fogão tinindo e a lenha queimando. O vermelho do fogo, as bochechas fervendo; o figo maduro estourando na boca; o ingá de polpa branca e a dor no pescoço de procurar os frutos escondidos nos galhos; a torta de maçã, lambuzada de nata. No pátio, as bolitas de gude de meu irmão, coloridas, intangíveis, proibidas, corriam alegres pelo chão de terra, chocando-se umas às outras. Escondida, eu pegava uma delas, a verde, e colocava no olho para ver o mundo colorido! A pequena mão mexia as bolitas na caixa, fazendo um barulhinho gostoso. A maleta de balé, vermelha, com uma bailarina, recorte da revista O Cruzeiro colada com goma de farinha; as sapatilhas, os cabelos presos com elástico em coques doloridos, a...

Mensagem no celular

Mensagem no celular Nada em Paulo denunciava o que estava por acontecer. Estava casado há sete anos com Elisa que nos últimos meses, vinha insistindo que já era hora de pensarem em ter um filho. Queria muito ser mãe.  Naquele dia, como de hábito, encontraram-se para almoçar. Na primeira mesa vazia sentaram frente a frente.  O garçom chegou com o cardápio. Paulo passou os olhos rapidamente pelas colunas, como se já soubesse o que pedir: filé com fritas e salada. ― Para mim o mesmo. E Coca Light ― completou a esposa. Olham ao redor. Ninguém conhecido no restaurante. Os olhares se encontram em silêncio. Ele desvia. Pega o celular no bolso interno da jaqueta. Ao mesmo tempo, ela procura na bolsa o seu aparelho, e os dois se concentram em examinar mensagens. Cabeça baixa, enterrada entre os ombros, eles teclam respostas e tuitam. O mundo se afunila na rede social que os faz comunicar-se com o universo. O pedido chega à mesa. Garfo na mão, olho no celular. Como autômatos...

Envelhecer

Envelhecer - I –             Quero ficar assim, sentada frente à janela, em silêncio, com o sol batendo em meu rosto; em silêncio, porque não consigo mais falar. Não falo, mas ainda sinto. Eles acham que não sinto mais nada, mas estão enganados; sinto o sol, sinto a chuva e fico triste. Sinto frio, muito frio. Sinto medo. Medo de ficar sozinha; medo de ficar suja, fedendo. Sinto meu cheiro. Gosto do cheiro de talco, colônia; não gosto de me sentir com cheiro de merda, de morte, de carniça. Às vezes me esquecem; esquecem de me limpar, e sinto muito frio. Minha manta cai e não consigo pegar. Olho pra ela, ali no chão. Foi minha filha quem me deu, ou minha neta, não lembro bem... Olho pra ela, tão macia, e ela não vem me aquecer. Sinto saudade; saudade de minha mãe, do pão doce, do campo, dos banhos no riacho, da água gelada. Minha mãe nunca vem me ver: foi assim no internato também. Fico sozinha. Gosto de ver o sol na janela...

A carta

A Carta             Fechou a porta do quarto bem devagar girando a chave em silêncio. Queria deixar do lado de fora, tudo e todos. Certificar-se de que estava só. Por alguns instantes ficou ali: as mãos espalmadas na madeira, segurando palavras, sons e imagens que insistiam em entrar.              Com passos trêmulos, caminhou até o espelho da cômoda. Não reconheceu o olhar duro e frio refletido;  lábios contritos, num quase choro. Examinou cada detalhe do semblante envelhecido, sem brilho, e sentiu pena. Como pode uma pessoa transformar-se repentinamente, a ponto de ver-se como um desconhecido?        Num movimento de repulsa quis se afastar, mas estava magnetizada por aquela imagem de dor. Era preciso ter coragem e ver de perto o estrago, o desastre que a consumira; poder enxergar as marcas abertas e ali expostas com tanta crueldade. Os cabelos, sempre tão bem t...