A carta
A Carta
Fechou a porta do quarto bem devagar girando a chave em silêncio. Queria deixar do lado de fora, tudo e todos. Certificar-se
de que estava só. Por alguns instantes ficou ali: as mãos espalmadas na madeira,
segurando palavras, sons e imagens que insistiam em entrar.
Com passos trêmulos, caminhou
até o espelho da cômoda. Não reconheceu o olhar duro e frio refletido; lábios
contritos, num quase choro. Examinou cada detalhe do semblante envelhecido, sem
brilho, e sentiu pena. Como pode uma pessoa transformar-se repentinamente, a
ponto de ver-se como um desconhecido?
Num movimento de repulsa quis se
afastar, mas estava magnetizada por aquela imagem de dor. Era preciso ter
coragem e ver de perto o estrago, o desastre que a consumira; poder enxergar as marcas abertas
e ali expostas com tanta crueldade. Os cabelos, sempre tão bem tratados, estavam sem vida, desgrenhados. Não segurou as lágrimas; deixou-as rolar e ficou
acompanhando seu trajeto pelas faces, até tingirem o vestido azul.
Com muito esforço
abandonou aquele triste quadro sentindo o corpo pesar mil quilos. Atirou-se
na cama. Na mão, de punho fechado, a carta estava reduzida à lixo. Quando
conseguiu abri-la, amarrotada, leu, pela última vez, sua sentença. Era mesmo o
fim. Rasgou-a com vigor, sentindo ódio, vergonha. Sentimentos que nunca imaginara sentir.
Olhava agora os pedaços de papel caindo como chuva sobre o tapete, dispersos,
desenhando formas estranhas. Observou o resultado: letras soltas, palavras entrecortadas, frases desconexas. E assim ficou, procurando juntar o que se partira, unir o que se rasgara, decifrar o
que já não tinha explicação.
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